descartes gadelha
Sem Título, 1979
Óleo s/ tela, 59x39cm
Acervo Rachel Gadelha
O Minimuseu e o Tempo
Nice e Estrigas se mudaram para o Mondubim na década de 60. Na época, era um sítio longínquo destinado ao lazer de H. Firmeza, pai de Estrigas, que a família usava para veranear. O jovem casal foi para lá cuidar de D. Bárbara, mãe de Estrigas, e ficou por cinco décadas.
Como na canção de Marina Lima que diz “você me abre seus braços e a gente faz um país”, Nice e Estrigas, para além de uma bela trajetória individual como artistas, construíram um mundo no Mondubim, a sua residência artística ecológica. Difícil descrever o Minimuseu Firmeza em sua singularidade, potência e amplitude. Pioneiro na oferta de muitas políticas culturais que estão sendo vivenciadas hoje. Casa museu, centro cultural, espaço de resistência cultural, centro de pesquisa, acervo e memória, escola livre de cultura, espaço de fruição, integração de cultura e natureza, local de criações e experimentações gastronômicas, escola de bordados, centro de arte educação. Tudo isso junto ou simplesmente um oásis, um refúgio para artistas inquietos e mentes pensantes?!
Lugar de acolhimento da diferença, da criação e do pensamento. Mas, sobretudo, um lugar de afeto. Muitas lembranças transbordam quando lembro do Minimuseu, ao longo da minha vida. Recordo o estranhamento de criança ao olhar aquelas obras, uma casa diferente que não tinha mobília, só arte; a receptividade de Estrigas que sempre abria o portão para todos os visitantes; Nice recebendo a todos com um largo sorriso e distribuindo flores para colocar nos cabelos das mulheres que lá chegavam; as conversas na varanda ou debaixo da mangueira; as rodas de bordados, a presença instigante e “diferente” de artistas e intelectuais, o estímulo às incursões ao mundo das artes e da natureza que Nice fazia às crianças que por lá apareciam. A inteligência fina e as observações perspicazes de Estrigas, a amplitude e atualidade de seu pensamento.
Nice e Estrigas dedicaram sua vida à arte. Deixaram um legado importante para a história das artes plásticas no Ceará, acessíveis nas várias salas da Casa Museu e por meio de um rico acervo de livros, recortes de jornais e catálogos de exposições cearenses que são fonte de consulta permanente para a imprensa e pesquisadores. Mas, para além disso, se destacaram pelo compartilhamento de seu conhecimento de forma afetuosa, inclusiva e plural.
O tempo passou. Nice e Estrigas já se foram e como não tiveram filhos, o sítio passou a ser responsabilidade da família que deseja que o legado seja compartilhado, cumprindo sua função social e simbólica. Menos de uma década da partida do casal, o Minimuseu busca reavivar o sonho de seus criadores por meio da realização de projetos apoiados por editais culturais nas áreas de arte, preservação da memória, recuperação de acervo, modernização das instalações físicas e a criação de grupos de bordados criativos para as mulheres da comunidade.
No entanto, tamanha missão é muito grande sem o apoio da sociedade e do poder público. O Minimuseu não existe institucionalmente e não tem estrutura de gestão, nem de fonte de recursos. Tenta se equilibrar de forma precária longe do centro de Fortaleza, em local ermo, de difícil acesso, com índices de violência e sem boa infraestrutura urbana.
Essa exposição, feita pelo Cineteatro São Luiz, vem em boa hora. Ao mesmo tempo em que convida para uma percepção sensível e o conhecimento do Minimuseu, traz com ela uma reflexão urgente e necessária. Ainda há espaço para o Minimuseu na cidade de Fortaleza? Qual o lugar dessa singela casa museu no contexto social e cultural em que nos encontramos? Essa é uma memória que precisa ser preservada? Por que? Para quem? Por quem?
Por isso, convidamos você a conhecer esse espaço. Leia, pense e imagine. Sinta a beleza, a força e a delicadeza do Minimuseu Firmeza. O que você vê representa um sonho? Ou é um espaço necessário para construirmos um futuro mais sensível e íntegro? Que destino, nós cearenses, daremos ao Minimuseu Firmeza?
Maio de 2021
Rachel Gadelha
Gestora cultural e sobrinha neta de Estrigas
O Estrigas
CLAUDIO CESAR
Escultura em resina
18x17x10cm
Impressões sobre arte nos trabalhos
da memória de Estrigas
Impressionista. Cubista. Dadaísta. Surrealista. Expressionista. Moderna. Vanguarda. Pré-história. Antiga. Clássica. Popular. Naïf. Pop. Periférica. Capital Cultural. Quantos nomes cabem em uma História da Arte? Como colocar as criações culturais em cada uma dessas caixinhas, ditas escolas, estilos? De onde se vê? De onde se olha? De onde se diz? De qual lugar falamos de arte? Barro, areia, palha de coqueiro, chita, muita chita, flores, praia, mar, renda, labirinto, bordados, madeira, jardim. O que temos para criar, para nos reinventarmos? Como conectar nossos mundos? Entre o que vemos e o que nos olha, como interagir com os mundos da arte? Quais são os nossos mundos da arte? Como se integram local, nacional e internacionalmente? Caminhando na cidade, olhando do alto do Morro do Moinho, visitando-se uns aos outros, ouvindo o rádio, lendo uma revista que chegou da Europa ou dos Estados Unidos. Escrevendo, registrando, documentando as mais diversas leituras de mundos, deixando os fios para que possamos recompor, desemaranhar nós, para que ensaiemos tecer outras vozes, outras narrativas a partir dos trabalhos da memória elaborados por Estrigas.
Quem foi mesmo que esteve por aqui? Nice enquanto fazia o café e a tapioca comentava que lembrava muito bem de quando aquele artista citado na conversa havia começado a participar da Sociedade Cearense de Artes Plásticas. Disse ela sobre o seu lugar de mulher artista diante das atividades de desenho com modelo vivo. Solta aquele sorriso e Estrigas olha para ela... Ah! Quem esteve por aqui? Barrica, Clarival Prado Valadares, Lina Bo Bardi, Antônio Bandeira, Aldemir Martins, Carlos Macedo, Flávio Paiva, Gilmar de Carvalho, Zenon, Decartes Gadelha, entre outros tantos. Quanta gente! Quantas conversas sobre arte estão presentes na documentação produzida por Estrigas para o Minimuseu Firmeza, esse museu de artista. Impressões de Estrigas. Impressões sobre as artes feitas no Mondubim, na sombra do Baobá, sob suas bençãos. Impressões do cotidiano das artes e suas circularidades, seus movimentos entre idas e vindas, entre partidas e chegadas. Estrigas, um narrador camponês, diria Walter Benjamin.
O Minimuseu Firmeza, museu de artista, lugar de insistência, barricada das artes realizadas onde no imaginário da Invenção do Nordeste, o cânone só consegue ver as secas, o chamado problema das secas, instituindo um regionalismo primitivo identificando-o como parte dos povos sem história. Os donos do cânone da História da Arte afirmam que não há densidade, não há conteúdo para escrever uma História da Arte no Ceará. Estrigas disse: Não! Estrigas insistiu, persistiu, elaborou, pesquisou, realizou os trabalhos da memória, documentou, salvaguardou, arquivou, preservou, expandiu, publicou, transmitiu, comunicou afirmando e argumentando sobre a força das artes feitas entre Cearás, entre mundos da arte, entre geopolíticas locais, nacionais e internacionais, entre nomeações ainda desconhecidas, desviantes do cânone e suas imposições. Quem estiver interessado na circulação de artistas, curadores, críticos de arte, visite e pesquise no Minimuseu Firmeza. Estrigas criou as suas próprias definições para os Impressionismos: reinventou as impressões, recriou, nos atravessamentos entre as experiências locais e os ditos eurocêntricos.
Carolina Ruoso
Professora, doutora e pesquisadora
ESTRIGAS
Sem Título, 2011
Óleo s/ tela, 40x60cm
Acervo Minimuseu Firmeza
ESTRIGAS
Sem Título, 1996
Óleo s/ tela, 25x80cm
Acervo Minimuseu Firmeza
ESTRIGAS
Sem Título, 2011
Óleo s/ madeira, 27x25cm
Acervo Minimuseu Firmeza
ESTRIGAS
Sem Título, 1999
Óleo s/ tela, 33x41 cm
Acervo Minimuseu Firmeza
ESTRIGAS
Sem Título, 1999
Óleo s/ tela, 63x44cm
Acervo Rachel Gadelha
ESTRIGAS
Sem Título, 2012
Aquarela, 30x25cm
Acervo Minimuseu Firmeza
ESTRIGAS
Sem Título, 2012
Óleo s/ tela, 20x29cm
Acervo Rachel Gadelha
A Nice
VANDO FIGUEIREDO
Escultura em barro
27x30x12 cm
Nice Firmeza:
entre cores, flores e sabores!
Uma artista múltipla! A Pintora das telas e da vida. Aquela que coloriu com linhas, escreveu com tintas, ressignificou receitas da culinária local, a mestra da cultura e dos afetos. A eterna professora, apaixonada pela arte de ensinar. Como dizem nos dias atuais: uma mulher empoderada! Que escreveu, pintou e bordou a sua própria história.
Maria de Castro Osório, a Nice Firmeza, nasceu em 18 de julho de 1921, na cidade de Aracati, Ceará. Ainda criança demonstrou interesse pelo “desenho com linhas”. Subverteu as ordens de dona Hermeta, sua mãe, e se inscreveu no curso de bordado no Patronato de Aracati. Ali seria o início de um mundo de cores, flores e mandalas tão peculiares da trajetória artística de Nice no bordado. Intuitiva, aprendeu muitos pontos e inventou tantos outros. Tornando com o tempo o seu bordado em algo particular, único, singular. Forte e ao mesmo tempo delicado, detalhista, minuncioso e colorido seu bordado assume a categoria de arte e as blusas bordadas por Nice ganharam espaço nos museus e nas galerias.
Nice começou a pintar com orientação técnica em 1950, quando ingressou na Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), criada em 1941, pelos artistas Antônio Bandeira, Raimundo Cela e Aldemir Martins. Descoberta por João Maria Siqueira, que era seu vizinho, já na Cidade de Fortaleza, Nice foi uma das primeiras mulheres a ingressar na SCAP.
A partir de 1951, começou a participar de exposições em Fortaleza, para depois ver seus trabalhos circularem em mostras no Brasil e na França. Alguns de seus quadros foram expostos em espaços como o I Salão Nacional de Artes Plásticas, na Casa de Cultura Raimundo Cela, o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC), o Museu do Ceará, a Maison dês Cultures Du Monde e a Casa de Cultura Palácio da Luz.
Sua obra na pintura foi bastante diversificada. Paisagens, máscaras, figuras humanas e as coloridas crianças de Nice que assim como sua criadora eram constituídas de um misto de doçura e rebeldia.
Nice Firmeza foi pioneira nas artes plásticas cearenses em um tempo em que não caberia às mulheres tarefas ligadas ao campo das artes. Foi artista, também, nos saberes e artes da tradição popular, sendo nomeada Tesouro Vivo/Mestre da Cultura, pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult), em 2007 ( Lei Estadual 13.842, de 27 de novembro de 2006).
Foi na SCAP, em 1961, que teve início o romance com aquele que seria o amor de toda a sua vida, Nilo de Brito Firmeza, o odontólogo e também artista plástico Estrigas. O sítio onde moravam, no bairro Mondubim, foi mais tarde transformado pelo casal em uma casa-museu. Lugar de encontros, fruição e criação artísticas. Espaço que ficou conhecido como Minimuseu Firmeza. Desde lá até os dias atuais o minimuseu é conhecido por ser um lugar aglutinador, por acolher desde sua fundação diversas reuniões de artistas, memória, pesquisa, criação artı́stica e vivências com a natureza.
Constitui-se em um dos principais acervos de artes plásticas do Ceará, de onde se é possível contar e refletir sobre a história da arte do Estado, reunindo mais de 500 obras de importantes nomes como Mário Baratta, Antônio Bandeira, Raimundo Cela, Aldemir Martins, Barrica, Zenon Barreto, do próprio casal Firmeza, dentre outros. É inegável a participação de Nice na formação e preservação deste acervo.
Em sua multiplicidade de dons Nice também incluiu sabor à sua arte. Na culinária lançou mão da intuição e criatividade experimentando combinações diversificadas que misturavam sabores e texturas. Tinha paixão pelas flores e pelo jardim do sítio em que vivia, e conhecia cada espécie de plantas frutíferas ou ornamentais que ali existia. Das arvores do que quintal da casa-museu tirava a matéria prima para suas receitas. Dava asas à imaginação e desenvolveu uma culinária afetiva que encontrou nas frutas do sítio uma das formas de demonstrar carinho pelos amigos e por seu grande amor, Estrigas.
O bolo Nilice, o doce de estrelas de carambola, o sorvete de sapoti, servidos de forma espontânea e afetuosa aos visitantes que sentavam em volta da grande mesa de madeira, coberta com toalha de plástico colorida, adicionavam leveza e doçura às visitas à casa-museu. Nesses momentos Nice fazia suas narrativas onde vida e arte se misturavam.
Para Nice não bastava saber. Nice amava ensinar. Atuou como professora ministrando aulas de pintura às crianças e coordenou a primeira Bienal de Pinturas Infantis do Estado do Ceará. A artista também ministrou aulas de arte no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno e diversos cursos livres de pintura para crianças e adolescentes em escolas de Fortaleza e no alpendre de sua casa-museu, no Bairro Mondubim, onde com afeto coloria e transmitia seus ensinamentos na pintura e no bordado. A linha que bordou e conduziu a arte e a vida de Nice sempre foi a simplicidade, expressa no gosto pelas coisas simples que adornam os sentidos da vida. Foi na simplicidade, no afeto e na espontaneidade que fez a grandeza de sua arte e de sua existência.
Nice semeou seus saberes e fazeres, seus pontos, suas flores e seu colorido regados com o afeto e a criatividade que eram próprios de sua existência, hoje se multiplicam em diversos grupos de bordado espalhados pela Cidade. As flores de Nice ganharam novos significados!
Nice faleceu no Hospital Dr. Carlos Alberto Studart Gomes, em Messejana, Fortaleza-Ce, no dia 13 de Abril de 2013, aos 91 anos de idade.
Paula Machado
Professora e pesquisadora
NICE
Sem Título, 1979
Óleo s/ eucatex, 28x36cm
Acervo Minimuseu Firmeza
NICE
Sem Título, 1953
Óleo s/ tela, 16x23cm
Acervo Minimuseu Firmeza
NICE
Sem Título, 1977
Óleo s/ eucatex, 24x30cm
Acervo Minimuseu Firmeza
NICE
Sem Título, 1979
Óleo s/ eucatex, 28x36cm
Acervo Minimuseu Firmeza
NICE
Sem Título, s/d
Óleo s/ eucatex, 31x36,5cm
Acervo Rachel Gadelha
NICE
Sem Título, 1993
Óleo s/ tela, 20x13cm
Acervo Rachel Gadelha
NICE
Sem Título, 1993
Óleo s/ tela, 22x31cm
Acervo Rachel Gadelha
Os Amigos
ZÉ TARCÍSIO
Sem Título, 1986
Pastel s/ papel, 75x110cm
Acervo Minimuseu Firmeza
Lugar de Esquecer o Tempo
Entre hibiscos, espadas-de-São Jorge, alfinetes, papoulas e outras tantas espécies que fazem a paisagem do lugar, ainda estão florindo Nice e Estrigas plantados entre um Baobá e o mundo.
Essa imagem talvez seja a melhor definição possível de fronteira na particular geografia em que o mundo de quem frequentava o lugar era o ponto de partida para todos os outros mundos.
Um lugar de resistência que defendia todas as formas de Arte como um direito inalienável de expressão, um território livre que abrigava as mais distintas correntes de pensamento, era também albergue da memória, que não obstante sua indisfarçável singeleza era única em sua sina de contar nossa história com as sutilezas que só o Minimuseu parecia conhecer.
Lá, tudo era a perder de vista, tudo ocorria espontaneamente, de sorte que se podia estar ali, a seguir na dobra do espaço-tempo, quase sempre vigiados pelos beija-flores a quem chamávamos de espiões.
Outra flora, outra fauna, outra dimensão. Um bunker confiável, sem as precariedades dos bunkers conhecidos.
A coletivização do conhecimento era uma regra, como a distribuição de flores e guloseimas que iam de doce de siriguela a camarão vegetal. A generosidade parecia constituir senão o único, mas o mais importante signo do secreto zodíaco do lugar.
Entre pontos de bordado, pincéis, espátulas e um forno que parecia aceso para sempre, era forjado o universo que se expande desde o seu Big Bang em 1969, se constituindo epicentro de alvoroços literários, artes visuais, opinativos e terreiro atemporal onde sempre se fundiram a aurora e o ocaso.
Abençoados pela enorme mangueira que emprestava sua sombra, davam-se os encontros de artistas que se espalhavam registrando detalhes que lhes emocionavam. Sessões de arte muralista assumiam as paredes da própria casa que parecia um enorme caderno de desenho e pintura e também um laboratório onde materiais e técnicas eram experimentados. Faziam-se exposições em cordéis e cavaletes, discutiam-se teoria e história da arte, bem como sua Filosofia. Planejavam-se ações. Numa dessas nasceu o “Grupo dos 5 ou mais de Arte e Cultura” que saiu de lá com exposições itinerantes de obras produzidas em camisetas que deveriam invadir galerias como se fossem mostras paralelas. Entre a provocação e o consenso residia a criatividade e o lugar ganhava o status de instância de aprovação onde artistas consultavam com frequência sobre sua produção.
Berço e abrigo, ponto de partida e destino, o Minimuseu Firmeza mantém intacta sua vocação referencial, seu destino de narrar a história das Artes Visuais no Ceará desde a sua “Pré-história”, como dizia o Estrigas, reservando a si essa característica impar e indispensável a todos os cenários e contextos culturais imagináveis. Vasto território e terreiro, é convite permanente a todos que procuram fresta por onde se possa ver o mundo como oficina criativa, participativa e solidária.
Viva o Minimuseu Firmeza!
Carlos Macedo
Artista Plástico
ZENON BARRETO
Sem Título, 1951
Óleo s/ tela, 36x26cm
Acervo Minimuseu Firmeza
RAIMUNDO KAMPOS
Sem Título, 1949
Óleo s/ tela, 51x65cm
Acervo Minimuseu Firmeza
HÉLIO ROLA
Sem Título, s/d
Óleo s/ tela, 25x32cm
Acervo Minimuseu Firmeza
HELOYSA JUAÇABA
Sem Título, s/d
Óleo s/ madeira, 22x32cm
Acervo Minimuseu Firmeza
DESCARTES GADELHA
Sem Título, s/d
Óleo s/ madeira, 40x30cm
Acervo Minimuseu Firmeza
ALDEMIR MARTINS
Sem Título, 1986
Técnica Mista, 32x16cm
Acervo Minimuseu Firmeza
A Casa
Minimuseu Firmeza, um bem cultural
A casa
Situada ao lado da via férrea, a casa permanece fiel à sua vocação de espaço cultural
interativo e centro de pesquisa. Além da coleção de obras de arte, a pequena biblioteca está associada ao arquivo que inclui catálogos de exposições, preciosos documentos sobre a história das artes plásticas cearenses, raramente encontrados em outros centros de documentação e bibliotecas do estado.
A casa foi edificada em estilo vernacular, na primeira década do século XX, por Inácio Parente, conhecido comerciante de Fortaleza, e adquirida por Hermenegildo de Brito Firmeza, pai do artista, no tempo em que famílias abastadas da cidade possuíam pequenas chácaras para veraneio localizadas nas cercanias da capital, numa área considerada, na época, como tranquila e possuidora de clima aprazível.
Ao longo do tempo, a edificação passou por pequenas alterações, obedecendo ao ritmo do crescimento da família, como a construção de novos cômodos para atender às necessidades da educação de dez filhos.
O alpendre marca a presença da nossa herança moura. Originalmente, era reservado para receber visitantes e tratar de negócios, segundo Luis da Câmara Cascudo; nele, Estrigas e Nice recebiam amigos para longos bate-papos pontuados pelas delícias da culinária da Nice.
Esse alpendre retoma o estilo casa de fazenda, assim como linhas e caibros de carnaúba marcam a junção dos elementos urbano-rural. As três janelas entaipadas revelam possível desejo do casal de manter a privacidade ou talvez de cuidados para com as salas de exposição.
Há também o acréscimo de novos cômodos para uso como ateliês do casal.
Parte do antigo piso com ladrilho hidráulico permanece, bem como o assoalho de acapu e cetim, característicos da época da sua construção.
A casa-museu possui caráter etnográfico: ali, é possível apreender certa forma de ser da cultura cearense. Essa ambiência oferece ao visitante esse encantador sentimento de aconchego, segurança, pertencimento, familiaridade; numa relação especular, ela reflete nossa identidade.
Residência do casal desde 1961, a casa passou a abrigar parte do atual acervo. Cresceu com o tempo; doações de artistas cearenses tornaram-no precioso. As obras de arte foram então expostas em ordem cronológica para possibilitar ao visitante, sobretudo aos alunos da rede pública, uma ampla visão das artes plásticas cearenses. A casa de Estrigas e Nice sempre funcionou como centro de estudos e pesquisas e tanto atraiu pesquisadores e professores, como artistas e visitantes ilustres, como Millor Fernandes e Rubem Braga e recebeu críticos de arte, como Clarival do Prado Valadares. Guardou obras de artistas como Aldemir Martins, Chico da Silva, Inimá de Paula, Barrica, Sérgio Lima, Descartes Gadelha.
A criação da Sala Aldemir Martins, no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, foi resultante da doação de telas do artista pelo casal Estrigas e Nice. Na casa se encontra a Sala Aldemir, Nice, Estrigas, ao lado da sala da Safra Nova, com trabalhos de amigos artistas que realizam suas criações na propriedade, como é o caso de Stênio Burgos, que pintou a série “Floração - Os Jardins da Nice”.
A criatividade artística na casa se completava com as aulas de bordado dadas por Nice, cujos trabalhos rivalizam em beleza com suas próprias pinturas.
Mas, não basta descrevê-la. A casa que abriga o MiniMuseu está repleta de lembranças, é um lugar de memória, revestida de valor simbólico. É um documento cuja leitura nos oferece referência no tempo e nos permite uma outra leitura do mundo.
- Afinal, o que é uma casa? Para Gaston Bachelard, “a casa é nosso canto no
mundo. Ela é um verdadeiro cosmo.”
Do grego antigo, kósmos, a palavra significa beleza, ordem, organização, harmonia; um universo em seu todo, conjunto de tudo que existe. Assim era a postura cognitiva do Estrigas, sempre buscando religar saberes, informações, conhecimento, imagens, partindo do microcosmo em direção do macrocosmo, sem perder sua visão crítica.
O sítio – a cobertura vegetal.
Em perfeita harmonia com a volumetria da casa, a beleza da pequena área verde formada, basicamente, por plantas nativas ornamentais e árvores de florestas, se oferece ao visitante numa encantadora sensação de recuo no tempo. Primeiro, como jardim histórico, onde a juventude ainda podia sentir e conhecer florações praticamente banidas dos jardins atuais e referidas apenas pela literatura, por canções, por poesias, que nos envolviam com aromas do passado: jasmins, manacá, resedá, roseiras, orquídeas, mimo do céu, brinco de princesa, estrela, bugari, samambaia, cecílias, cresciam soltos sob os cuidados da Nice, como um verdadeiro exemplo dos antigos jardins cearenses, alheios à racionalidade de traçados.
Espalhava-se pela propriedade maravilhoso cenário ecológico para a recepção de amigos e visitantes, formado pelo jardim e pela vegetação centenária, à sombra de mangueiras, babaçu, açaí, coqueiros, caramboleiras, sapotizeiros, abacateiros, goiabeiras, gonçalo-alves, castanholeiras, cedros; os amigos e visitantes eram presenteados com flores e frutas. A presença de um africano baobá é uma prova de que as diferenças se integravam harmoniosamente no universo do casal. O amor pelos amigos se estendia pela propriedade. Animais e plantas também recebiam cuidados e atenção; Estrigas e Nice manifestavam amor e respeito para com todos os seres vivos.
Fomentando a fruição do belo junto aos visitantes, Estrigas assumia uma posição política, pois sabia que a melhor escola para formação da cidadania é a vivência na diversidade cultural, caminho que leva à prática democrática. Ali, era o território da liberdade exercida através da beleza e do amor pelo conhecimento.
- Como preservar esse espaço que, sem nenhuma dúvida, se reveste de valor histórico, artístico, cultural, e afetivo, que reforça nosso sentimento de pertencimento e revela nossa identidade?
Christian Norbert-Schulz busca na filosofia grega uma reflexão sobre o conceito de lugar. Para os antigos gregos, cada lugar era regido por um deus, considerado como o espírito do lugar; e os antigos romanos também acreditavam que nenhum lugar existe sem o protetor espiritual, o genius loci.
Temos, portanto, uma interação entre lugar e identidade, vista numa abordagem fenomenológica. Aldo Rossi dá atualidade ao conceito ao associar o espírito do lugar à ideia de desenvolvimento sustentável. Assim, um projeto pode ser considerado muito bom, bonito, e não se adequar a determinado lugar.
Mas, não só os gregos e romanos acreditavam em espirito protetor de um lugar. Na Guiné-Bissau, próximo à fronteira com o Senegal, existe uma tabanka, uma pequena aldeia do povo da etnia Balanta. Em meio ao calor da floresta africana, num escaldante começo de tarde, ao ver um redemoinho envolver um baobá e se espalhar pela floresta, fiz um comentário sobre a importância do vento naquela hora do dia.
Mamna, então garoto de treze anos, me explicou:
“Não é o vento, é o Irã, que mora no baobá, que estava com muito calor e saiu prá dar
uma voltinha...”
O baobá do Mondubim já tem um Irã e um genius loci que repousa junto a ele protegendo o lugar. Mas, até quando ele estará livre do confronto com a ganância da especulação imobiliária que destrói coisas belas?
Como a sociedade civil e o Estado poderão juntos defender esse rico patrimônio?
Qual o melhor instrumento de preservação para ser aplicado?
Embora ainda sem proteção legal, é inegável que o bem está revestido de:
● Valor Histórico: é um documento; como um livro, nada dele deve ser retirado
para que sejam lidas todas as páginas;
● Valor artístico: contido no conjunto formado pela casa, pelo acervo, pela a
paisagem e a ambiência;
● Valor natural e paisagístico: o conjunto formado pela casa e a cobertura
vegetal;
● Valor como Bem Processual, ou Imaterial, merecendo registro na categoria
Lugar: em razão das práticas de sociabilidade que permanecem e são recriadas
pelas novas gerações;
● Patrimônio afetivo: revela nossa forma de ser, reforçando laços com o bem
cultural que representa nossa identidade.
A casa-museu e seu sítio correspondem, sem dúvida, à ideia de patrimônio contida na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, da Unesco, em seu Artigo 7 – O patrimônio cultural, fonte da criatividade:
“Toda criação tem suas origens nas tradições culturais. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em todas suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversidade e estabelecer um verdadeiro diálogo entre as culturas.”
Em meio às comemorações do Centenário de Estrigas, impõe-se a necessidade de tratar da preservação da sua memoria, leia-se do MiniMuseu e seu sítio, pois que fazem parte da nossa memória coletiva. E considerando que os eventos comemorativos foram realizados por muitas mãos e mentes, pensamos que os desdobramentos dessa questão nos levarão, em conjunto, a definição do melhor instrumento para sua preservação.
Muito obrigada,
27 de setembro de 2019 – Porto Iracema das Artes.
Palestra proferida no Ciclo de Palestras integrante das comemorações alusivas ao
Centenário do artista plástico Estrigas, promovidas pela Secult.
Olga Paiva
Pesquisadora
Ficha Técnica
Curadoria | Rodrigo Gadelha
Produção Executiva | Nefertith Andrade
Assistência de Produção | Mairla Costa
Assessoria de Imprensa e Mídias Sociais | Elídia Vidal
Fotografia | Guilherme Silva
Montagem e Design | Yule Bernardo
Coordenação Técnica | Alexandre Jereissati